quarta-feira, 7 de outubro de 2020

PAULO FREIRE, ETERNO MESTRE!

 

PAULO FREIRE, ETERNO MESTRE!

 

Paulo, meu amigo e camarada;

Sua luta é nossa luta

Estamos na mesma empreitada:

Educação não é tudo,

mas sem ela não somos nada.

 

Não se educa o cidadão

Senão lhe aponta quais os desafios

Que se insurgem

No meio da caminhada.

 

Do Campo à cidade

Sua pedagogia é uma lição

De que o povo para ser livre

Não deve esperar pelas chaves do patrão,

só ele mesmo pode ser protagonista de sua emancipação.

 

Ir além do soletrar

Ir além do suor salgado

Ter direito a sonhar

Coisa que não faz o gado.

 

Na ponta da língua

Palavras de amor e sabedoria,


Daquele que em tempos de autoritarismo resistia

Como guerreiro de fé, como bom pernambucano,

Alfabetizando e ensinando pelo Brasil,

Que o fez com justiça

Patrono dessa pátria mãe

Que nem sempre foi gentil.

 

Freire sempre citado

Em todo o mundo tem raízes,

Pois onde houver oprimidos,

Dentre eles

Terás o seu nome conclamado,

e na lição aprendida,

Eis a mais importante:

Gente é ser humano;

Tem esperanças e sonhos;

Não merece ser tratada como gado.

E assim seguimos

Sua pedagogia progressista;

Resistindo as ondas fascistas

Que nos querem todos destroçados!

Um abraço camarada a este homem

 Que mesmo não estando mais aqui

Estará sempre ao nosso lado!

 

(Henrique Nunes. 19.09.20)

CARONA DE CANDIDATO


 








Meu compadre Severino
Me apresentou certo dia,
Com a maior alegria
Ao dotô Zeferino.
E este, muito grã-fino,
Tratou-me dentro das norma;
Apertou a minha mão
e disse: - Satisfação!
Eu disse: - Da mesma forma!

Depois me deu seu cartão,
O retrato, o endereço.
Eu disse: - Assim não mereço!
Disse ele: - Faço questão!
Ainda me perguntou
Onde era a minha casa.
Eu lhe respondi: - No sítio,
Muito pra lá da Ceasa.
Ele acendeu um cigarro
E disse: - Entre no meu carro,
Comigo ninguém se atrasa!

Quando ele disse aquilo,
Meu coração deu um sarto,
Eu já ando disconfiado
Com essa onda de assarto.
Mas depois pensei comigo
Que aquele cidadão
Não podia ser um ladrão,
Afiná era um doutô.
Quando eu vi o carro novo
E o toca-fitas tocano,
Eu logo fiquei pensando:
- Isso é um conquistador!

Pensei nas minhas menina,
Pensei também na muié.
Mas depois pensei comigo:
- Seja lá o que Deus quisé!
Entrei no carro do home
E o home empurrou o pé.
- Ô carro novo danado,
Ô homem conversador!
Eu chega tava acanhado
Pra conversar com o dotô.

Foi me deixá lá em casa,
Subindo ladeira e grota.
Ao meu guri mais novo
Ainda deu uma nota.
Cumprimentou com respeito
Minhas fia e a mulhé,
E aceitou com muito gosto
Cuscuz de mi com café.

Depois que o homi saiu
Fiquei de braço incruzado
Pensando comigo mermo:
- Ô cidadão educado!
Daquele dia pra cá,
Onde o home me encontrava,
Ainda que fosse correno,
Quando me via, parava.
Abria a porta do carro,
Mandava entrar e eu entrava.

E se tivesse bebendo
Com uma trurma de amigo,
Deixava os amigos lá
E vinha falar comigo.

Um dia, eu cheguei num bar,
Perto da banca de jogo,
E lá estava o dotô,
Bebendo, “puxando fogo”.
Quando ele me avistou
Veio logo pro meu lado,
Dizendo: - Vamos beber
Comigo no “reservado”?
Aí eu pensei comigo,
Já meio desconfiado:
- Ou esse dotô é santo
Ou pensa que eu sou viado.

Mas aí olhei o home
Desde riba inté embaixo,
E eu vi que ele tinha jeito
De um cabra muito macho.
- Eu também não levo jeito
Pra certas coisas, patrão!
E finalmente eu aceitei
Entrá com o cidadão.

Ele sentou-se numa mesa,
Do seu lado eu me sentei.
Olhou bem na minha cara,
Na sua cara eu olhei.
Ele olhou pro garçom
E depois falou assim:
- Garçom, traga por favor
Uma dose dupla de Gim.
Aí eu disse: - Seu moço,
Traz uma cana pra mim!

Nisso o garçom saiu,
Isperto que só raposa.
Foi quando o home me disse:
- Vou lhe pedir uma coisa!
Eu disse: - Pode pedir,
Não precisa se acanhar.
Não sendo o que tô pensando,
Poderei até lhe dar.

Então o homem sorriu
E foi me dizendo: - Eu noto
Você meio disconfiado,
Se pro seu lado eu me boto
Eu só quero de você
E da família é o voto!
É que eu sou candidato,
Quero ser vereador.
Pra ajudar essa pobreza,
Esse povo sofredor.

Foi quando eu disse: Dotô,
Eu voto em Massaranduba,
Minha mãe em Cabrobró,
Minha mulhé em Natuba.

Minhas fias em Cochichola
E papai lá em Pipirituba.
Então, por esse motivo,
Não vou votar no senhor.
Quando olhei para o home,
Tava mudando de cor.

Não disse uma nem duas.
Não falou e não sorriu.
Olhou de longe o garçom,
Chamou com um “psiu!”
Puxou do bolso a carteira,
Pagou a conta e saiu.
Daquele dia pra cá,
Eu confesso a vocês, meu povo:
Nunca mais tive o direito
De andar de carro novo.

 

(GERAÇÕES. Coletânea de Poesias. Ademar Bogo (Org). Editora Expressão Popular: São Paulo, 2002.)

 


sexta-feira, 4 de outubro de 2019



A TERRA DOS MENINOS PELADOS. Graciliano Ramos. 1ºed. Cameron, Rio de Janeiro: 2018.

Este livro – A terra dos meninos pelados – do consagrado escritor brasileiro e alagoano Graciliano Ramos foge um pouco dos modelos narrativos de obras como Vidas secas, São Bernardo ou Histórias de Alexandre. Pois essa obra dar-se a entender voltada para as crianças. No entanto, quem disse que os adultos não precisam aprender sobre o lidar com “o diferente”?
         A história é desenrolada ao longo de 23 capítulos curtos, provavelmente uma forma de não cansar o leitor mirim ou menos habituado. Mas a história é fascinante e cheia de surpresas. Animais fantásticos (falantes), seres fantásticos (objetos falantes), uma princesa, e o seu narrador – Raimundo Pelado – um menino (criança) que se sente rejeitado pelos demais colegas por ser careca, e ter um dos olhos preto e o outro azul. De fato, algo bem inusitado. No caminho de volta da escola, ao se esconder de uns garotos, acaba se perdendo e indo por um caminho que mais parece um sítio distante. Mal sabia ele que aquele caminho o levaria uma terra mágica (Tatipirum) onde as pessoas e os seres que lá habitam teriam muita afinidade com ele, e enxergariam na sua excentricidade grande beleza.
         Um traço interessante da obra em questão é a construção de imagens narrativas de caráter pictórico, ou seja, que em suas passagens remetem a desenhos animados ou a pinturas surrealistas(retrata os sonhos). Um ótimo exercício de imaginação. Mesmo sendo eu adulto, acho que sou, eu particularmente aprecio desenhos animados e ler obras consideradas infantis. Mas devemos ter cuidado com obras que infantilizam as pessoas, ou seja, que não apresentam senso crítico, apenas reproduzem preconceitos e estereótipos da sociedade. O que não é o caso da obra A terra dos meninos Pelados.


         Esta obra, entre outras questões, trata das pessoas “especiais”, nos aponta que não há nada de mais em ser semelhante ao outro, igualmente não há nenhum problema em ser diferente. Em todos lugares que formos nos depararemos com ambas as situações. Isso fica claro, pelo fato de Raimundo descobri aquela terra maravilhosa, onde todos o respeitam, e têm traços físicos com o menino-narrador, e apesar do acolhimento, ele não quer deixar de voltar para casa, para a escola, e encarar o “choque” das diferenças. Será que aqueles meninos da escola ainda zombariam dele por ser diferente?

         Em Tatipurum, Raimundo fez muitas amizades. Ele vai embora, mas promete a todos voltar para visitá-los. Ele aprende a amar a singularidade de cada ser com qual estabeleceu amizade. E no fundo, isso é o mais importante. Esta obra pelo que percebemos é atualíssima, pois mais do que nunca vivemos o drama da exclusão social e do preconceito no nosso cotidiano: preconceito pela cor, sexualidade, origem social, pela linguagem, pelo grau de escolaridade, pela capacidade física. Enfim, é um combate o qual a educação tem um instrumento mais do útil, necessário – O livro – letramento literário e sensibilização através da arte. Eis o grande desafio.

RESENHA escrita por Carlos Henrique Ferreira Nunes.

domingo, 15 de setembro de 2019


UMA HISTÓRIA VITORIOSA(Aluna: Ana Clarisse Serafim Santos. 6° "b"; Escola José Pereira Sobrinho)



Meu nome é Eraldo Erasmo de Oliveira. Eu nasci em 1957, aqui mesmo no sítio Baixa do Capim, no município de Arapiraca, pertencente ao Estado de Alagoas. Por essa época prevalecia a cultura do algodão, do milho e do fumo. Aqui não havia cercas nas propriedades, mal existiam estradas ou calçadas; nem bicicletas se via por aqui. A maioria andava a pé e descalço.
Eu e muitas crianças daqui trabalhávamos para comer. Eu mesmo tinha vontade de ir à escola, mas não podia. Foi somente em 1972 que construíram uma escola, e mesmo velho eu comecei a estudar naquele ano. O terreno onde foi construída a escola fora doado por Miguel Januário, um grande companheiro e pioneiro aqui na nossa região. Ah, nas baixadas aqui do sítio havia uma área repleta de capim, por isso batizou-se a comunidade com este nome - Baixa do Capim. Criava-se gado ali, além do cultivo do fumo, como meios de sobrevivência para o povo.
Em 1975, minha primeira filha, Marileide, ia para a escola feliz, alegre e muito satisfeita. Mas quando teve que fazer o ensino médio ficou mais complicado: tinha que ir estudar na cidade. Eu tive que vender uma espingarda minha de estimação para lhe comprar passagens de ônibus para ir à escola. No entanto, vejo que valeu muito a pena. Ela foi a primeira a se formar. Tornou-se professora. Foi por esta época que havia chegado a energia elétrica. Antes disso se usava lampiões a gás ou querosene, ou mesmo velas. Para se tomar banho o costume era só fazê-lo de oito em oito dias. Banho de verdade com sabão feito de sebo. Enquanto isso nos banhávamos nos rios e açudes aqui da região durante o restante da semana.
Quando havia festa durante a Semana Santa, eu e meus amigos fazíamos bonecos de Judas com folhas de bananeira: isso era bom demais. Era a tradicional malhação do Judas. Sempre que íamos à festa, quando éramos adolescentes, tinha que ser acompanhado por um adulto, e muitas vezes meu pai não deixava sair, e eu e meus irmãos íamos para a rede chorar a noite inteira. A minha sorte e de toda a comunidade é que naquele tempo não havia tantos ladrões, mas se houvesse eles sairiam de bolsos vazios, porque a gente não tinha dinheiro, não tinha um tostão. Não nos preocupávamos como hoje com roupas ou bens materiais, tudo era mais simples e as pessoas mais humildes. Nas festas e bailes que íamos tínhamos sempre umas paqueras, mas quem namorava tinha que manter distância da namorada, pois era proibido ficar um encostado no outro. Um dia, enquanto curtia a festa, um primo meu chegou a mim e disse: "Oh, Pedrina está apaixonada por tu, viu". Eu respondi-lhe: "Eu, um pobre coitado?". Fiquei envergonhado, eu confesso. Mas graças ao meu primo-cupido hoje estou casado com ela.
Quando moleque a gente tinha medo de lobisomem e de um tal "vacinador". Quando diziam "lá vem o homem da vacina!", todo mundo corria, sobretudo as crianças. Esse medo era por causa das pessoas que ficavam inventando histórias fantasiosas sobre essas coisas. No caso do vacinador não era uma ficção, era um agente de saúde do governo. Mas quem era ignorante tinha medo de vacina. Às vezes, durante à noite, todos se sentavam em volta da fogueira. Certa vez, reunidos na frente de casa aparece no meio da noite uma luz estranha vindo em nossa direção, aí todos saíram correndo e entraram dentro de casa ou para dentro do mato, quando na verdade era somente um automóvel com seus olhos acesos, pois era raro aparecer algum ali, principalmente pela noite. No ano de 2000 fizeram aqui no sítio um restaurante chamado "Buchada do Vavá", que até hoje existe por preparar uma deliciosa Buchada de Bode. O mesmo se localiza em frente à escola e vizinho a igreja.
   Em 2004, como presidente da associação comunitária pude ajudar na construção de setenta casas de alvenaria, e assim, todos puderam ter sua própria casa. Tenho muito orgulho de contar para vocês minha história, relembrar as experiências pelas quais passamos e vivemos e que fazem parte de nós. São sempre lembranças as quais tenho prazer em contar para os mais novos, que muitas vezes ao ouvi-las, não têm ideia das lutas que travamos para que hoje muitos aqui da Baixa do Capim tenham o direito de estudar e trabalhar.

quarta-feira, 17 de julho de 2019


RESENHA DO LIVRO: JORGE COOPER – OBRA COMPLETA

JORGE COOPER E SUA SIMPLICIDADE DESCONCERTANTE[1]





 Jorge Cooper com seus versos curtos e poemas igualmente breves, com sua ironia fria e humor ora sério, ora sarcástico, pode ser considerado, sem a menor dúvida, um os maiores poetas de nosso modernismo tardio, e porque não dizer, pós-modernismo.
Se é possível compará-lo a outros poetas contemporâneos, sejam de nossa terra ou estrangeiros, é porque o discurso, como diria Mikhail Bakhtin, tem uma natureza dialógica. Mas por outro lado, é evidente a singularidade intrínseca a natureza estrutural ou seria des-estrutural que se impõe na poética coopernicana. Sua autenticidade advém de seu caráter, de seu jeito poético de ser. O poeta admite em entrevista concedida ao também poeta e jornalista Ricardo Oiticica, que jamais deixou de escrever, mesmo nos momentos difíceis.
Ledo Ivo considera Cooper um vanguardista, um poeta do cotidiano, do tempo presente, e portanto, dos dilemas de nossa vida. Aí percebe-se certo grau de realismo, talvez originado de sua simpatia pelo materialismo histórico de Karl Marx. O tempo representado em sua obra através da memória tátil das experiencias não é o tempo linear e bem calculado, mas antes é o tempo das emoções e sensações vividas e experimentadas pelos sujeitos em contextos reais.
Em Jorge Cooper, nos diz Ledo Ivo “partimos do sonho e da escuridão para a vida real e a claridade”. Sua poesia é um “tapa na cara” Com palavras breves e versos curtos e desconcertantes, com versos brancos e livres liberam a palavra de qualquer amarra, para que cumpram a função de dizer o que tem que ser dito:

Eu sou
nos meus poemas
Eles têm o número exato
de palavras e
o tamanho em que
a inspiração se coube
- Eles são como a clara e a gema
no ovo

(Precisamente assim
como eu caibo em mim)

Sua sonoridade e ritmo vem das assonâncias e consonâncias (repetição de sons vocálicos e consonantais) postas num mesmo verso, ou em versos intercalados, mas que garantem notável peculiaridade. Ele era de fato, como se pode perceber, um poeta liberto de regras. O seu padrão era não ter um padrão. Deixar que a palavra flua sem condicionamentos.
Que pena que este poeta alagoano não tenha tido o real valor reconhecido em vida, mas por outro lado, fiquemos felizes que a academia começa agora a resgatar o trabalho deste poeta por excelência, que fez de suas experiências a matéria viva capaz de fotografar e imortalizar imagens ao mesmo tempo tão cotidianas e atemporais. Vale apena apreciar e valorizar este nosso conterrâneo.

REFERÊNCIAS:
COOPER, Jorge. Poesia Completa. 2° ed. Imprensa Oficial Graciliano Ramos: Maceió, 2011.







terça-feira, 9 de julho de 2019

LIBERDADE

Quando Médici foi à feira deixou a gaiola aberta.
Comprando alpiste se lembrou...
Correu, correu...
E quando chegou: que alívio!
O pássaro ainda se encontrava lá
Em seu poleiro.
Já não lembrava o que é ser livre
Pois nascera em cativeiro.

Livro Cantos Juvenis (Poesias), p.13 - Carlos Henrique F. Nunes


Uma história passada a limpo

Aluna: Vitória Vieira dos Santos

     Existem várias maneiras de viajar... Hoje viajarei no tempo, lá no arruado de Utinga, no Município de Rio Largo, no Estado de Alagoas, em um pequeno local da zona rural chamado Gameleira. No ano de 1931 nascia Milton Monteiro da Rosa.
  Nesse lugar morava um povo simples – trabalhadores de uma usina –, onde as casas eram doadas de acordo com o cargo exercido na empresa. Então, você já imagina! Tinha ruas para os endinheirados e para os modestos. Os elitizados recebiam casas grandes e formosas, com jardim na frente e ruas calçadas. Já a moradia dos humildes operários era colada uma nas outras, dividindo uma só parede, com o mesmo modelo. Se você conhecesse a minha residência, não precisaria conhecer a do vizinho. Tínhamos terreno na frente de casa onde plantávamos de tudo o que você imaginar: frutas, verduras, hortaliças... Sem falar dos canaviais e das matas que cercavam esse local. As ruas eram de barro, não tinha esgoto. Inclusive, a minha era uma dessas.
  Naquele tempo acordávamos cedo com um maravilhoso cheirinho de café torrado. Ao tempo que obedecíamos a um ritual que gostaria que fosse eternizado: rezava, pedia a bênção aos meus pais e ia para a escola. No caminho cumprimentava a todos com um “bom-dia”. Eita dia bom!
   Chegando à escola, cumprimentava a professora, pedia licença e ia fazer a lição, já que o ensino era rígido, tudo à base do respeito. O que não me agradava eram as punições aplicadas àqueles alunos que faziam alguma travessura. A mestra colocava de castigo, ajoelhado em grãos de milho e de frente para os colegas, servindo de referência para aqueles que tinham a intenção de bagunçar.
  No entanto, ninguém aprontava para não ocupar aquele lugar. A vida aqui era muito tranquila, nosso relógio era o tempo. Aliás, que tempo! Não tínhamos
pressa, andávamos a pé, a cavalo ou de trem. Esses eram os únicos meios de transporte acessíveis.
A locomotiva funcionava a lenha e nela existiam duas camadas sociais: A e B. Na primeira classe iam os passageiros que tinham condições econômicas, com cadeiras acolchoadas. Já os da outra classe tinham bancos duros e com mais passageiros. Porém, todos chegavam aos seus destinos do mesmo jeito.
   Se bem me lembro, os costumes populares imperavam. As pessoas se conheciam e trocavam experiências sentadas à porta de seus lares. Os mais velhos contavam causos e lendas para os mais jovens e eles repassavam seus ensinamentos.
Brincávamos de boca de forno, o que é o que é, passa anel... Era uma interação só! Idosos, adultos, jovens e crianças, todos numa mesma emoção, que eu diria de diversão coletiva.
  Nessa época também as comemorações eram frequentes. A que mais gosto de lembrar é da Festa da Cana, concurso em que era premiado o povoado que trouxesse a maior cana. Ela deveria ser adubada e conservada para esse grande dia, que acontecia todo mês de dezembro. A usina convidava todas as pessoas dos povoados distantes. A alegria era garantida. Se alguém tentasse atrapalhar essa diversão, era punido na “baiaca”, local fechado, onde o transgressor recebia um banho de mel durante toda a noite. Podia ser até um engomadinho, era baiacado do mesmo jeito
e só libertado no outro dia, todo lambuzado e na hora de o trem passar, para servir de exemplo.
     Ah, se pudesse voltar no tempo... Traria de volta a tranquilidade das brincadeiras sem malícias no rio Mundaú, principal percurso de águas naturais que banha algumas cidades do meu Estado.
    Amava nadar nele, cujas águas eram tão límpidas e transparentes que dava até para contar pedrinhas
debaixo d’água. Enquanto isso, as mulheres lavavam roupas e cantavam músicas que a minha imaginação fluía. Não sabia se viajava em meus pensamentos ou mergulhava no rio de tanta inspiração. Eram sensações maravilhosas, momentos gostosos de liberdade...
   Hoje a modernidade me encanta e também me assusta. Tudo mudou! O trem é transporte igual para todos. Tenho televisão e vejo reportagens sobre a poluição do rio Mundaú e nem acredito que isso aconteceu. Agora sei das horas pelo relógio, vejo e converso com minha filha que está tão longe pelo computador. Coisas que jamais seriam pensadas... Paro e lembro-me de tudo como se fosse hoje...

(Texto baseado na entrevista feita com o senhor Milton Monteiro da Rosa, 62 anos. Texto finalista das Olimpíadas de Língua Portuguesa de 2014).
Professora: Jacira Maria da Silva
Escola: E. E. F. Marieta Leão – Rio Largo (AL)

Texto usado na oficina sobre narração em 1° pessoa e discurso direto! Primeira semana de julho de 2019.